A Bíblia é uma coletânea de fatos e palavras
que, conforme a fé das comunidades judaicas e cristãs, contêm revelação do amor
de Deus pela humanidade. Porém, o cenário ideal do jardim onde o homem habita
só foi chamado de “paraíso” nas versões medievais. Originalmente, nem o mundo
foi criado por acaso, nem o homem. Este é um ser criado em permanente busca de
identidade e sentido, mas a existência humana não é solitária, nem
independente. O homem não está só, faz parte e está sujeito relacionalmente com
o restante da criação. O resumo aponta: “ele não existe sem as demais
criaturas”. Adam é filho de “adamah”. Filho da terra (Gn 2,7). Um rio brota do
jardim para irrigar o jardim, o Éden é paráfrase da terra toda. A observação
desse Universo não confirma o determinismo pretendido em nossos dias. E nem
mesmo o pragmatismo pós-tecnológico.
A narrativa bíblica não levanta questionamentos
sobre a existência do ser Criador, sua origem e razões que o levaram a criar o
cosmo. Leis naturais rígidas não conferem com o cenário da criação, onde o
pressuposto do Iluminismo é que cada astro, cada estrela, cada componente,
funciona como um relógio, uma máquina movida por um combustível inesgotável e
perpétuo. Alterado o projeto original pelo homem (Gn 3,17), que ousa interferir
na originalidade da criação, este passará a ser juiz do bem e do mal. Arcará
com as consequências: “E Yahweh-Deus expulsou o homem do jardim onde fora
colocado. Baniu-o e colocou anjos como seguranças para impedi-lo de entrar”.
Podemos compreender, portanto, que os autores do grande poema da criação já
entendiam as intenções do homem de corromper a terra, enquanto corrompia-se a
si mesmo pela ganância.
Com Andrés Queiruga, devo convencer-me de que as
aparências, os significados do momento atual, inundado de informações
científicas e teorias sobre o planeta Terra, devem ser reavaliados. A
cosmovisão bíblica primitiva foi adulterada ao extremo, e nós somos os agentes
racionais que dela nos distanciamos e, quando olhamos para traz, embora exista
considerável diversidade de manifestações míticas, culturas conservadas dos
muitos povos que interpretaram suas origens nos muitos lugares deste Planeta.
Não vejo porque não ouvirmos as vozes que vêm de lá. A essência de um mito não
é regida pela razão, mas pela consciência da importância do sagrado, o homem e
o universo. Como utopia teológica, o Reino de Deus, consequentemente, e a
justiça ambiental, formam moldura e quadro para um mundo novo possível.
Os sentimentos neles contidos, porém, como se
encontra, refletem uma comunhão que abrange tanto os seres humanos como os
demais seres da natureza. Tanto animados como inanimados. Natureza e mundo humano
se fundem e se inter-relacionam. Humanos se veem como humanos, animais se veem
como animais? Não. E os elementos como a Água e a Terra, como se veem? A
Criação geme em dores de parto até agora (Rm 8,22). “Se geme, porque é
violentada, podemos ouvir os seus gemidos?”, pergunta Walter Saas.
É exacerbada a importância da natureza, quando
desviada para o bem-estar artificial. Turismo ecológico, por exemplo. Por que
necessitamos de celulares multifuncionais, capazes de fotografar belezas
incríveis no meio da floresta, se eles não atendem às necessidades dos milhões
que padecem da fome, das endemias, da exclusão? Lemos informes científicos
populares, e só vemos deslumbramento sobre a era pós-tecnológica. O Ocidente,
campeão das novas tecnologias, prossegue na globalização da miséria enquanto
sustenta a acumulação de bens como panaceia de salvação. E não poupa o planeta,
depreda-o enquanto vai esgotando suas riquezas naturais, como a água.
Privilegiados no uso das tecnologias para o conforto e bem-estar existentes são
apenas 25 %, provavelmente, dos 7 bilhões de habitantes do planeta. O caminho
certo é, evidentemente, também reduzir ao máximo a emissão desses gases
poluentes, substituindo os motores movidos a petróleo por outros, movidos à
eletricidade. Não acreditamos que alguém, em sã consciência, se oponha a isso,
em acordo com Ferreira Gullar.
A dificuldade, portanto, não está aí e, sim, na
substituição dos seres vivos por máquinas poluidoras. Leiamos, “substituição do
ser humano pelos sonhos de consumo deste século”. Oferecem bem-estar localizado
para ricos, tecnologias eletrônicas avançadas, saúde e medicina de alto preço,
educação para postos de trabalho privilegiados, lazer de alto custo e alcance
territorial. Porém, há 5,5 bilhões de deserdados ameaçados pela barbárie
tecnocrática e 2 bilhões morrem de fome e brevemente perecerão de sede se a
contaminação ou esgotamento de mananciais formados através de milhões de anos
prosseguirem no ritmo atual.
O capitalismo alcançou a água, mas cooptou, como
sempre, na história do mundo, a religião que defende o lucro e resultados
financeiros. Tudo é produto de mercado. Tudo se vende. Tudo é feito mercadoria.
Tudo é consumível. Faz-se muito dinheiro também com a religião, como se a
parábola das moedas escondidas resumisse o Reino de Deus. Não é a toa que a
recente força evangélica pentecostal que mais influencia a religião histórica
dedica-se tão intensamente à mídia e ao potencial mercadológico das multidões.
A massificação religiosa dá lucro.
É preciso olhar para o chão, portanto. O Planeta
se torna cada vez mais inviável. O atual modelo de desenvolvimento, apoiado no
sistema liberal capitalista e na orientação que se dá aos conhecimentos
científicos, aponta para uma determinada visão de homem, da natureza e da
razão. Desenvolvimento sem sustentação da biodiversidade. Em última instância,
a causa primeira está no antropocentrismo ocidental, certamente ajudado por uma
inadequada interpretação da tradição judaico-cristã, que tende a fazer do ser
humano mais um “dominador” e explorador da Criação, do que seu “guardião”.
Seria melhor dizer “jardineiro”. Enquanto isso, justifica-se a interpretação
espiritualista abstrata como uma “queda de braço” com Deus. O homem perde, mas
se vinga destruindo a criação (cf. início).
A questão, portanto, não pertence ao mundo da
técnica, mas ao mundo da ética. Estamos diante de uma questão antropológica.
Bíblica? Certamente, porque há uma tradição libertária, do homem e da terra,
ali refletida, que nos acompanha desde quatro milênios. A sobrevivência do
homem está na pauta das lutas ecológico-ambientais. Nas palavras de Edgar
Morin: “urge uma nova Antropologia, bem como uma nova Teologia, capaz de
restaurar o ser humano no conjunto da obra da Criação”. Uma nova racionalidade
que integre as ciências, inclusive a espiritualidade inteligente voltada para o
planeta, e outros tipos de razão, é bem-vinda. A Humanidade e a Criação total
agradecerão. A cordialidade, o cuidado com o ser humano total e o mundo criado,
a compreensão ecumênica da salvação do planeta, estão na pauta da
espiritualidade ecológica em absoluta prioridade.
A Bíblia é uma coletânea de fatos e palavras
que, conforme a fé das comunidades judaicas e cristãs, contêm revelação do amor
de Deus pela humanidade. Porém, o cenário ideal do jardim onde o homem habita
só foi chamado de “paraíso” nas versões medievais. Originalmente, nem o mundo
foi criado por acaso, nem o homem. Este é um ser criado em permanente busca de
identidade e sentido, mas a existência humana não é solitária, nem
independente. O homem não está só, faz parte e está sujeito relacionalmente com
o restante da criação. O resumo aponta: “ele não existe sem as demais
criaturas”. Adam é filho de “adamah”. Filho da terra (Gn 2,7). Um rio brota do
jardim para irrigar o jardim, o Éden é paráfrase da terra toda. A observação
desse Universo não confirma o determinismo pretendido em nossos dias. E nem
mesmo o pragmatismo pós-tecnológico.
A narrativa bíblica não levanta questionamentos
sobre a existência do ser Criador, sua origem e razões que o levaram a criar o
cosmo. Leis naturais rígidas não conferem com o cenário da criação, onde o
pressuposto do Iluminismo é que cada astro, cada estrela, cada componente,
funciona como um relógio, uma máquina movida por um combustível inesgotável e
perpétuo. Alterado o projeto original pelo homem (Gn 3,17), que ousa interferir
na originalidade da criação, este passará a ser juiz do bem e do mal. Arcará
com as consequências: “E Yahweh-Deus expulsou o homem do jardim onde fora
colocado. Baniu-o e colocou anjos como seguranças para impedi-lo de entrar”.
Podemos compreender, portanto, que os autores do grande poema da criação já
entendiam as intenções do homem de corromper a terra, enquanto corrompia-se a
si mesmo pela ganância.
Com Andrés Queiruga, devo convencer-me de que as
aparências, os significados do momento atual, inundado de informações
científicas e teorias sobre o planeta Terra, devem ser reavaliados. A
cosmovisão bíblica primitiva foi adulterada ao extremo, e nós somos os agentes
racionais que dela nos distanciamos e, quando olhamos para traz, embora exista
considerável diversidade de manifestações míticas, culturas conservadas dos
muitos povos que interpretaram suas origens nos muitos lugares deste Planeta.
Não vejo porque não ouvirmos as vozes que vêm de lá. A essência de um mito não
é regida pela razão, mas pela consciência da importância do sagrado, o homem e
o universo. Como utopia teológica, o Reino de Deus, consequentemente, e a
justiça ambiental, formam moldura e quadro para um mundo novo possível.
Os sentimentos neles contidos, porém, como se
encontra, refletem uma comunhão que abrange tanto os seres humanos como os
demais seres da natureza. Tanto animados como inanimados. Natureza e mundo humano
se fundem e se inter-relacionam. Humanos se veem como humanos, animais se veem
como animais? Não. E os elementos como a Água e a Terra, como se veem? A
Criação geme em dores de parto até agora (Rm 8,22). “Se geme, porque é
violentada, podemos ouvir os seus gemidos?”, pergunta Walter Saas.
É exacerbada a importância da natureza, quando
desviada para o bem-estar artificial. Turismo ecológico, por exemplo. Por que
necessitamos de celulares multifuncionais, capazes de fotografar belezas
incríveis no meio da floresta, se eles não atendem às necessidades dos milhões
que padecem da fome, das endemias, da exclusão? Lemos informes científicos
populares, e só vemos deslumbramento sobre a era pós-tecnológica. O Ocidente,
campeão das novas tecnologias, prossegue na globalização da miséria enquanto
sustenta a acumulação de bens como panaceia de salvação. E não poupa o planeta,
depreda-o enquanto vai esgotando suas riquezas naturais, como a água.
Privilegiados no uso das tecnologias para o conforto e bem-estar existentes são
apenas 25 %, provavelmente, dos 7 bilhões de habitantes do planeta. O caminho
certo é, evidentemente, também reduzir ao máximo a emissão desses gases
poluentes, substituindo os motores movidos a petróleo por outros, movidos à
eletricidade. Não acreditamos que alguém, em sã consciência, se oponha a isso,
em acordo com Ferreira Gullar.
A dificuldade, portanto, não está aí e, sim, na
substituição dos seres vivos por máquinas poluidoras. Leiamos, “substituição do
ser humano pelos sonhos de consumo deste século”. Oferecem bem-estar localizado
para ricos, tecnologias eletrônicas avançadas, saúde e medicina de alto preço,
educação para postos de trabalho privilegiados, lazer de alto custo e alcance
territorial. Porém, há 5,5 bilhões de deserdados ameaçados pela barbárie
tecnocrática e 2 bilhões morrem de fome e brevemente perecerão de sede se a
contaminação ou esgotamento de mananciais formados através de milhões de anos
prosseguirem no ritmo atual.
O capitalismo alcançou a água, mas cooptou, como
sempre, na história do mundo, a religião que defende o lucro e resultados
financeiros. Tudo é produto de mercado. Tudo se vende. Tudo é feito mercadoria.
Tudo é consumível. Faz-se muito dinheiro também com a religião, como se a
parábola das moedas escondidas resumisse o Reino de Deus. Não é a toa que a
recente força evangélica pentecostal que mais influencia a religião histórica
dedica-se tão intensamente à mídia e ao potencial mercadológico das multidões.
A massificação religiosa dá lucro.
É preciso olhar para o chão, portanto. O Planeta
se torna cada vez mais inviável. O atual modelo de desenvolvimento, apoiado no
sistema liberal capitalista e na orientação que se dá aos conhecimentos
científicos, aponta para uma determinada visão de homem, da natureza e da
razão. Desenvolvimento sem sustentação da biodiversidade. Em última instância,
a causa primeira está no antropocentrismo ocidental, certamente ajudado por uma
inadequada interpretação da tradição judaico-cristã, que tende a fazer do ser
humano mais um “dominador” e explorador da Criação, do que seu “guardião”.
Seria melhor dizer “jardineiro”. Enquanto isso, justifica-se a interpretação
espiritualista abstrata como uma “queda de braço” com Deus. O homem perde, mas
se vinga destruindo a criação (cf. início).
A questão, portanto, não pertence ao mundo da
técnica, mas ao mundo da ética. Estamos diante de uma questão antropológica.
Bíblica? Certamente, porque há uma tradição libertária, do homem e da terra,
ali refletida, que nos acompanha desde quatro milênios. A sobrevivência do
homem está na pauta das lutas ecológico-ambientais. Nas palavras de Edgar
Morin: “urge uma nova Antropologia, bem como uma nova Teologia, capaz de
restaurar o ser humano no conjunto da obra da Criação”. Uma nova racionalidade
que integre as ciências, inclusive a espiritualidade inteligente voltada para o
planeta, e outros tipos de razão, é bem-vinda. A Humanidade e a Criação total
agradecerão. A cordialidade, o cuidado com o ser humano total e o mundo criado,
a compreensão ecumênica da salvação do planeta, estão na pauta da
espiritualidade ecológica em absoluta prioridade.
Derval Dasilio
É
pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor do livro “O Dragão que
Habita em Nós” (2010).
Postagem extraída do site: http://www.ultimato.com.br/conteudo/a-biblia-na-rio-20
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