Por Ed René Kivitz
A mistura entre religião e política é nitroglicerina pura. Quem mexe na
coisa com displicência ou de maneira inadequada corre riscos de ver a mistura
explodir causando danos não raras vezes irreparáveis. Pois essa nitroglicerina
entrou de vez, e pela porta dos fundos, diga-se de passagem, no cenário
eleitoral da cidade de São Paulo. O noticiário informa que José Serra,
candidato do PSDB, recebeu o apoio da Igreja Mundial do Poder de Deus, do
apóstolo Valdemiro Santiago. A Igreja Universal do Reino de Deus, com ligações
estreitas com o PRB, apóia seu candidato, Celso Russomano. O mesmo fazem as
Igrejas Assembleia de Deus (Ministério Santo Amaro) e a Igreja Renascer em Cristo. As igrejas
Sara a Nossa Terra, setores dos carismáticos católicos e segmentos dos fiéis
dos padres Marcelo Rossi e Fábio de Mello apóiam o candidato do PMDB, Gabriel Chalita. Notícias
de bastidores do mundo gospel divulgadas também pela imprensa paulistana
revelam que a coordenação inter-religiosa da campanha de Fernando Haddad teria
alinhavado acordo para apresentar o candidato do PT em estande na próxima
edição da ExpoCristã, evento evangélico que promove outra mistura letal:
religião e negócios.
Os apoios dos religiosos não ocupam apenas as páginas dos jornais
e as mídias virtuais. Estão presentes também nos púlpitos
das igrejas, notadamente aquelas caracterizadas por lideranças de pendor
autoritário – não admitem questionamento e muito menos contestação – no modelo
clericalista tipo “a igreja é minha”. Pastores, bispos e
apóstolos “abençoam” publicamente seus respectivos candidatos, com
direito a orações, discursos e defesas em nome da fé e de Deus. As fronteiras
entre templos e praças públicas, púlpitos e palanques, fiéis e eleitorado,
guias espirituais e cabos eleitorais foram absolutamente devas sadas. As
comunidades de fé são transformadas em currais eleitorais e o antigo “voto de
cabresto” foi substituído por algo mais sofisticado, o “voto de cajado”, numa
referência ao abuso da autoridade pastoral sobre seus rebanhos.
Não faltam vozes condenando tais alianças entre igrejas e candidatos e
partidos políticos. Mas, por que razão a prática é considerada
inadmissível? O que existe de errado em uma igreja apoiar a eleição de um
candidato com quem poderá contar caso ele seja realmente eleito? Por que
razão o chamado “voto de cajado”, em que as lideranças religiosas manipulam
seus rebanhos para a adesão massiva a um candidato é considerada inaceitável?
Não basta dizer que “isso não é ético”. É preciso explicar porque.
O voto é um direito e uma responsabilidade do cidadão. Sindicatos,
agremiações culturais, ONGs, clubes esportivos, associações da sociedade civil
e empresas – embora se organizem para apoiar seus representantes – não
votam. Igrejas também não votam. Não existe “voto coletivo”. Quem vota é o
cidadão.
“Os deveres cívicos não devem ser encarados como propriedade privada,
mas como uma responsabilidade pública”. Esta é a opinião de Michael Sandel,
autor do best seller Justiça, baseado em curso homônimo que
atualmente ocupa a lista dos mais populares da Universidade de Harvard.
“Terceirizar os deveres cívicos significa aviltá-los e tratá-los da maneira
errada”, conclui.
A noção de deveres cívicos como responsabilidade pública, defendida por
Sandel, afeta o conceito de democracia republicana, que pode ser compreendida
pelo menos de duas maneiras. A primeira é derivada do próprio entendimento da
expressão: república, res pública, significa “a coisa pública”. A democracia,
por sua vez, pode ser compreendida, mesmo com o risco do simplismo, o poder que
em ana do povo, é exercido pelo povo, para o bem do povo. Em síntese, democracia
republicana é o exercício de administrar a coisa pública de modo a atender os
interesses coletivos.
A segunda maneira de compreender a democracia está voltada para tensão
das forças entre os diferentes grupos representativos da sociedade. Todos os
segmentos da sociedade têm direito e liberdade de associação, expressão e
mobilização para a busca dos seus próprios interesses. Em termos mais simples
ainda, cada um puxa a brasa para a sua sardinha, e assim a brasa fica espalhada
e igualmente dividida para todas as sardinhas. Na prática, isso é cruel.
Primeiro, porque quem não se expressa, não se associa e não se mobiliza,
acaba ficando sem brasa para a sua sardinha. Mas também e principalmente porque
aqueles que têm mais condições de expressão, associação e mobilização ficam com
porções significativas de brasa em suas sardinhas. Quem detém os poderes
econômicos, políticos e de comunicação de massa leva vantagem. Em outras
palavras, como todos sabemos, sobra para os pobres, que, aliás, nem mesmo sardinhas
têm.
O melhor exercício da democracia é mesmo aquele em que cada cidadão
está imbuído da busca dos interesses coletivos, independentemente de seus
próprios interesses ou de seus grupos respectivos. Em termos ideais, os
detentores do poder – em todas as instâncias – deveriam exercê-lo para o bem
comum e a promoção da justiça na sociedade. Se a res é pública, todos os
cidadãos deveriam dela se beneficiar. A expressão, associação e mobilização na
defesa dos interesses particulares de pessoas ou grupos é uma traição aos
ideais da democracia republicana.
Quando a igreja se associa e se mobiliza ao redor de candidatos que
atendem aos seus interesses, está fazendo o jogo totalitário: governar do meu
jeito, de acordo com os meus interesses, aos quais todos devem se ajustar, sob
pena de serem banidos do jogo. O cristão, é, sim, chamado a viver
dia a dia a prática de uma fé, que, por se manifestar sempre a favor da
justiça, invariavelmente trará, como resultado de sua ação transformadora,
conseqüências políticas. Respeitando as individualidades e rechaçando
veementemente os maniqueísmos e as manipulações, a igreja é lugar privilegiado
para a promoção de uma nova consciência. Boa parte dos movimentos de
transformação social surgiu de profundos compromissos espirituais e motivações
religiosas. Desmond Tutu ensinou que “não há nada mais político do que dizer
que religião e política não se misturam”. Quem se omite do processo político
favorece o status quo e fica refém do poder dominante. Vale
a reflexão. Até porque cristãos jamais deveriam se esquecer de que
inegavelmente são também seguidores de um prisioneiro político.
Quando a igreja extrapola seu papel social e assume a disposição de
“voto coletivo”, rouba do cidadão sua prerrogativa de liberdade de consciência
e opção ideológica e político partidária, bem como seu direito inalienável de
votar livremente. Nenhum apoio institucional é vazio de interesses
particulares. A igreja que apóia um candidato está explicitando sua expectativa
de retribuição e recompensa. Em outras palavras, está colocando à venda aquilo
que deveria estar fora da lógica de mercado, a saber, o voto e o mandato
público.
Essa perversão da democracia representativa, no entanto, é mais antiga
que a Grécia. Todos os poderosos a praticam. Vergonhosa e infelizmente, não
faltam líderes religiosos que participam do jogo com os mesmos critérios de
injustiça e espírito totalitário dos outros atores, comprometidos apenas
consigo mesmos e os grupos que sustentam seus privilégios. A comunidade da fé
que deveria exercer na sociedade um papel profético e diaconal acaba sendo
levada por lideranças pseudo espirituais, que abusam de sua autoridade, se
vendem por trinta moedas, e vendem o justo por preço menor do que o dos
passarinhos, como já acusou o profeta hebreu. Para esses líderes oportunistas e
inescrupulosos, a res é pública, mas a cosa é nostra – com todas as implicações
do trocadilho.
Texto postado no site: http://edrenekivitz.com/blog/2012/09/res-e-publica-mas-cosa-e-nostra/
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