Salvo do genocídio
Estou me lembrando agora de quando fiquei grávida pela
terceira vez, há oitenta anos. A essa altura já tínhamos uma filha e um filho:
Miriã e Arão. Os tempos eram muito difíceis. Faraó começava a apertar o cerco
contra nós. Não valia a pena colocar mais filho no mundo. Anrão e eu evitávamos
o relacionamento físico naqueles dias em que certamente poderia ocorrer uma
gravidez. Mas houve um lapso e fiquei esperando um bebê. Orávamos diariamente
para que fosse uma menina, porque Faraó havia ordenado a matança pura e simples
de qualquer criança do sexo masculino nascida entre os hebreus. Era uma questão
de segurança nacional, justificava o rei do Egito. Achamos por bem esconder a
gravidez. Então passei a usar roupas ainda mais largas. De vez em quando uma comadre
me dizia que eu estava engordando e eu, naturalmente, concordava com ela para
encerrar a conversa o mais rápido possível. O parto foi bem discreto: meu
marido mesmo cuidou de mim. Não era a menina que havíamos pedido
insistentemente a Deus, mas um menino robusto e formoso. Todos nos entreolhamos
e assumimos a situação. Como ninguém sabia da gravidez, resolvemos ocultar
também a própria criança.
A tarefa não foi fácil. As fraldas eram lavadas e estendidas
dentro de casa para não chamar a atenção das pessoas. Acho que nenhum
recém-nascido tomou tanto mel quanto esse nosso filho: mal ele começava a
chorar, Miriã pingava uma gota de mel na boca do garoto. Se insistisse no
choro, a família inteira entoava o mais alto possível os cânticos do Senhor.
Éramos conhecidos como a família cantante. Não podendo escondê-lo por mais
tempo, calafetamos com betume e piche um pequeno cesto de junco e nele
colocamos o menino, então com 3 meses de idade. Eu mesma levei o cestinho e o
larguei no carriçal à beira do rio Nilo, nas proximidades do sítio onde a filha
de Faraó costumava banhar-se. Era um lugar mais ou menos seguro, longe da
correnteza, a salvo dos crocodilos, da famosa tilápia nilótica (que chega a
pesar 90 quilos) e do peixe-elétrico (que é capaz de produzir uma descarga de
300 a 400 volts). Meu medo maior era de um tipo de cobra venenosa chamada naja
haie, comum no Egito. Mas todo o nosso plano foi preparado na presença e na
dependência de Deus, com muita oração. Desde o nascimento do menino, tive o
pressentimento de que ele era formoso também aos olhos de Deus. Voltei para
casa e deixei Miriã nas proximidades do lugar onde o menino ficara.
Salvo das águas
Deus fez infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou
pensamos. O plano deu certo. A filha de Faraó desceu ao rio dos rios e logo viu
o estranho cestinho. Curiosa, ela mesma o tomou e o abriu. Meu filho chorava —
estava molhado de xixi, com fome e sem as gotinhas de mel de Miriã — e a
princesa se ligou imediatamente a ele. Ela era uma das sessenta filhas de
Ramessés II e se chamava Merris. A jovem logo percebeu que o menino era filho
de hebreus e o adotou. Nesse momento, Miriã entrou em cena e se ofereceu para
chamar uma mulher hebreia para amamentar a criança até o desmame. A princesa
deu o seu consentimento — afinal o garoto estava morto de fome e chorava sem
parar. Minutos depois, lá estava eu com meu próprio filho ao seio, sem que
Merris soubesse que eu era a mãe dele. Por ironia da história, até recebi
salário para cuidar do menino. A filha de Faraó deu-lhe o nome de Moisés, que
significa “salvo das águas”. Só então percebi que nossas orações devem ser
flexíveis e inteiramente sujeitas à vontade e à sabedoria de Deus. Felizmente,
o Senhor não as ouviu ao pé da letra, quando lhe pedíamos que viesse uma menina
e não um menino.
Salvo dos prazeres transitórios do pecado
Além de alimentar Moisés e lhe dispensar outros cuidados
físicos, transmiti-lhe as primeiras impressões e informações recebidas de
nossos ancestrais sobre Deus e sobre o nosso povo. Porém ele foi educado
em toda a ciência dos egípcios. Tornou-se um homem poderoso em palavras e
obras. Aos 40 anos, ele recusou ser chamado filho da filha de Faraó e se
identificou conosco, preferindo ser maltratado junto com o povo de Deus a
usufruir prazeres transitórios do pecado. Abandonou o Egito e permaneceu firme
como quem vê aquele que é invisível. Mais tarde, já casado e com dois filhos,
Deus lhe apareceu na terra de Midiã, numa chama de fogo, e o comissionou para
liderar o êxodo de Israel.
Ao voltar ao Egito, aconteceu uma coisa terrível: Deus veio
ao seu encontro numa estalagem e o quis matar. Pode parecer muito estranho o
Senhor querer destruir o instrumento que Ele mesmo escolheu, preparou e
equipou. Moisés e Zípora, sua mulher, logo entenderam que tratava-se de uma
advertência divina para que eles circuncidassem os filhos, cumprindo assim “o
sinal da aliança” dado por Deus a Abraão e aos seus descendentes.
Quanto ao êxodo e à nossa viagem até aqui, ao pé do monte
Sinai, privo-me de narrar todos os fatos para não me alongar demais. Há vários
dias, Moisés se encontra no alto do monte de Deus. Aqui embaixo há uma
certa inquietação e uma movimentação que começa a me preocupar. Estou orando
muito por Arão, três anos mais velho que Moisés. A responsabilidade dele é
muito grande.
Nota
Retirado do livro Deixem
Que Elas Mesmas Falem, de Elben César.
O título original é “Meu filho é homem. E agora?”.
O título original é “Meu filho é homem. E agora?”.
Postagem extraída do
site: http://www.ultimato.com.br/conteudo/a-mae-de-moises.
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